“A PELEJA DO DIABO COM O DONO DO CÉU”
“Já que tudo depende da boa vontade/É de caridade que eu quero
falar/Daquela esmola, da cuia tremendo/Ou me mato ou me rendo, é a lei
natural/Há um muro de cal espirrado de sangue/De lama, de mangue, de
rouge, e batom/O tom da conversa que ouço me criva/De setas e facas, e
favos de mel/É a peleja do diabo com o dono do céu”.
A questão não é da grande, da média ou da pequena mídia. A questão
não é dos brancos, dos negros,dos índios,do arco-íris. A questão não é
dos jornalistas, dos políticos, dos garis, dos artesãos, dos poetas, dos
“sem lenço e sem documento”. A nossa peleja é entre o “deus” e o
“diabo” , entre o “céu” e o “inferno” interiores.
No filme “2001,uma odisseia no espaço”, o líder de um grupo de
ancestrais do ser humano,depois de vencer o confronto sangrento com um
bando rival, com o uso de ossos como armas, bate com um desses ossos em
outro. O impacto faz com que o osso atingido seja arremessado para o
alto e o diretor do filme,de modo brilhante – e triste – faz uma fusão
do osso arremessado para uma aeronave futurista prestes a pousar na lua.
Várias interpretações existem para esta transição. Escolho a que diz
que,apesar dos avanços tecnológicos, a barbárie é cada vez mais presente
na nossa vida. A modernidade não é sinônimo de civilidade. E se não há
civilidade, prezado Zé Ramalho, como falar de caridade. Sem caridade não
há boa
vontade.Sem as duas,não há humanidade. Apenas uma guerra de
ossos.Neste momento,uma guerra de “ossos de titânio”.
Mataram um índio de nome Vitor. Nome que lembra clássicos da
literatura russa.Aculturamento da tal modernidade. Uma criança. Assim
como mataram – e matarão – tantos outros indígenas, tantos outros
brancos,negros,amarelos,pardos,vermelhos, petralhas e coxinhas, esquerdistas e direitistas, padres,pastores,prostitutas,gays,crianças,mães,pais,namorados,poetas ,presidentes,militares,políticos,
jornalistas…
A questão não é o agendamento ou não do fato. Não é a pauta. Não é a
manchete. Não é o editorial. Não é o furo. Não é este texto escrito por
um pai que tem um filho chamado Vitor. Não é a dor de uma mãe índia, a
pietà da rodoviária. Faz muito tempo que os dias não são mais dos
índios. E nenhum deles descerá “de uma estrela colorida, brilhante”. O
indiozinho, como todas as crianças mortas pelo mundo, não era “impávido
que nem Muhammad Ali”. Apenas,todos,meninos.
A questão é a desumanidade. É a bomba, com o detonador acionado, que carregamos dentro da gente. É a nossa
peleja.Todos nós,com um osso na mão.
Foto:
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