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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

FRAGMENTOS(1)

FRAGMENTOS  1

Aqui a gente vivia a normalidade, a mansidão de acompanhar as sombras das nuvens enquanto elas passeavam por estes céus invertidos, recoloridos. Paz purinha. Eternidade bebida em golezinhos. Entristecia se houvesse qualquer aceleração, qualquer mexida desajeitada, reinvenção do sossego.
A última novidade era a Coroaci barriguda, esperando bebê novo para somar seis, porque aqui a filharada se conta pela rama. Modo mais fácil não tem. Punhadinhos de mão cheia, no mínimo, em cada casa. Não importa se tem reboco, se é de pau a pique, se é de palmeira ou de sapé. Abraço de mãe basta. Ainda não inventaram casa melhor.

Eustáquio Periquito troçava com a quantidade de crianças que nasciam, todo ano, por aqui. Dizia que se cada um fosse transportado pela cegonha, este lugar teria um cheiro insuportável de penas. Sem falar no tapete de titica a cobrir o chão. Tião Preto aprovava a ideia.

- Pego a Barulhenta, azeito a bichinha e espanto essa galinhada espichada que ocês chamam de cegonha!
- Mas o senhor dava conta de matar tantas assim ?!

Tião Preto mira no fundo dos olhos do perguntador, assuntando se a interrogação é de espanto ou de chacota. O interlocutor pasma com as profundezas do olhar miúdo do Tião Preto. Entre os dois olhares o tempo congelado é barreira intransponível para qualquer filho de Deus vivente de sacrifícios e de dores por estas bandas. Nesse congelamento, quem piscar esfarela, vira caco de vidro d’água.

O caçador não desiste, espremendo o outro com as mãos do seu próprio medo. Medo de que a “Barulhenta” possa não funcionar contra as cegonhas e venha saciar sua sede de carnificina em cima daquele escanifrado caco de gente, vento revestido de taquarinhas de ossos e carne rasinha.

Do livro “Grigri”, inédito.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

FRAGMENTOS

FRAGMENTOS *

Eu tenho certeza de que meu irmão estava perdendo a paciência comigo, moscazinha aloirada rondando à sua volta todas as vezes que ele fazia os exercícios do colégio.

Bonito, o meu irmão. Mais bonito quando, dentro do seu quarto, debruçava-se sobre os livros, escrevia e escrevia nos cadernos, resolvia problemas de Matemática e sabia o nome da capital de qualquer Estado brasileiro

- Vladimir…
- Oi…
- Qual é a capital do Estado de Tocantins?
- Palmas.

Mas promessa é dívida e insistia em lembrá-lo. Não que ele fosse tratante, isto não. Podíamos ter desavenças de vez em quando, que bem serviam para o sangue circular mais depressa e nos deixar vermelhos feito pimentões. Agora, trato é trato. Ponto de honra entre nós. Esquecimento, porém, é coisa possível de acontecer, não é defeito de caráter, é mais uma preguiça da memória. Quem é que nunca se esqueceu de alguma coisa, um dia?

Me lembro bem como foi. Estávamos dando um bom e prolongado banho no Sheik, um cão moleque e rebelde à água e sabão. Era sábado, uma tarde quente onde o vento, de barriga cheia, não tinha a menor vontade de se mexer. O Sheik sacudia o corpo e a água escapulia de seu pelo procurando refúgio na gente.

- Por que o mar é azul, Vladimir?
- Porque reflete a cor do céu, Ludmila.
- Mas tem mar verde! E nunca ouvi falar em céu verde!
- É por causa das algas marinhas que estão no fundo…
- O que é uma alga marinha?
- É uma espécie de alface de peixe…
- Ah…

Tínhamos  que deixar o Sheik acorrentado para secar. Solto, danava a rolar pelo terreiro tornando o nosso trabalho perdido.

- Existe mar de outra cor?
- Tem o Mar Vermelho, que o Moisés separou ao meio para dar passagem aos hebreus que fugiam do Egito.
- Então posso inventar um mar de cor diferente? Por exemplo, um mar laranja?

Rindo, Vladimir deu-me um beijo na testa. Cheirávamos a pelo de cachorro molhado. E fez a promessa.


*Do livro “Truques”, inédito.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

LEITURAS

LEITURAS

Aqui estou eu iniciando minha viagem pela história de Ismael, Ahab,Queequeg. Embarcado no  Pequod e seduzido pela narrativa de Herman Melville, navego em busca da Moby Dick .

Muitos leram este clássico na adolescência, uns precoces enfrentaram as ondas ainda na infância. Como estou na transição entre as duas etapas da vida, chegou a minha vez!

De volta para a estante, depois de lidos, foram a história do Tim Maia contada pelo Nelson Motta no seu “Vale Tudo”, “Os trabalhadores do mar”, do Victor Hugo, e “Conversa sobre o tempo”,  uma longa,sensível e descontraída conversa entre Zuenir Ventura e Luis Fernando Verissimo, mediada por Arthur Dapieve . A obra de Melville era o próximo livro.

Não sei exatamente os motivos de iniciar esta leitura. Talvez um sentimento particular de saber como lutamos contra as adversidades e contra nós mesmos. Talvez para fugir um pouco da leitura rápida, sintética e imediatamente substituída por outra nesta maratona da informação diária.

O certo é que resolvi aprender a enfrentar “baleias” e a revigorar o valor das amizades. Resolvi encarar “oceanos” e aprender sobre a minha insignificância. Resolvi me apoderar de dois volumes de história e mudar de aventura, por alguns dias, a minha vida neste barco onde só eu e minha cadela Lady caminhamos da proa até a popa, da popa até a proa. E que todas as  vezes que escalo o mastro principal para vislumbrar horizontes ela late, assustada, com medo de ficar sozinha no convés da sua vida.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

NÃO EMBARQUE

NÃO EMBARQUE 

Rodoviária de Belo Horizonte. Você chega para embarcar ( e assenta naquelas cadeiras desconfortáveis que estão incluídas na taxa de embarque que você paga), para comprar uma passagem, para ir ao banheiro, para fazer um lanche.

No instante em que você vai ultrapassar os guichês das empresas de ônibus e entrar no “salão” uma situação pode ocorrer na sua frente. Ali, onde ficam (ou ficavam) os telefones públicos – 3 em cada parede , um cidadão entre a tristeza, a desorientação e o nervosismo é “assistido” por dois outros(pode ser também um casal ou duas mulheres). As mochilas do homem encostadas num canto.
Você aparece na frente deles e a ação é rápida, precisa, com um diálogo mais ou menos assim:

Homem 1 : Você brigou com ele?
Cidadão: Ele pegou minha carteira…(anda para um lado e para o outro,passa a mão na cabeça)
Homem 2 : Levou tudo?
Cidadão: Meu Deus e agora, como é que eu vou fazer?
Homem 1: Você tava chegando aqui?

Aí, se você parar, um dos homens atrai você para a conversa, pedindo ajuda. Em algumas situações, um deles  “dá” uma grana para o “assaltado” e pergunta se você também não pode ajudar. Junto com o pedido, vem aquele discurso sobre a falta de segurança, a bandidagem, a covardia de assaltar um “trabalhador”, “um pai de família”.

Você “embarca” se quiser. Os de “bom coração”, sempre.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

ALTAR DE SACRIFÍCIO

ALTAR DE SACRIFÍCIO 

Gostamos de mártires. Gostamos que os deuses venham até o altar dos sacrifícios e se deixem profanar por nossas mãos, nossas aflições, remorsos, vaidades, temores.

Deuses e semideuses também têm uma predileção pela profanação. Mártires se dispõem ao mais atroz sofrimento e nós gostamos disso. Cercamos o coitado com velas, orações, frases de efeito, lembranças e até registramos uma aproximação com a câmera dos celulares. Mártir que se preza é quem se dá ao espetáculo.

Existem aqueles que se sacrificam pela preservação do próprio nome. Outros, da história. Há mártires que se deixaram imolar para salvar a honra de instituições. Há mártires que resolvem dar exemplo de caráter mediante altas dosagens de paliativos morais.

Tem os que se eximem das responsabilidades de homens e fazem uso das prerrogativas dos títulos ou cargos que possuem para esconder uma trajetória marcada por desatinos, leviandades e outras atrocidades.

E os mártires de si mesmos. Os que sofrem as consequências de suas pretensas santidades.

Todos adorados por nós. Seus maiores demônios.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

MÃOS

MÃOS *

Antigamente a molecada, para ofender ou intimidar os outros, fazia um círculo com o polegar e o indicador. Hoje, a meninada usa os mesmos dedos em forma de cano e cão de uma arma para se impor perante seus pares. A morte é uma metáfora nas mãos infantis. Pá! Pá!

Drummond afirmou e pediu:

“Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.”

As mãos desses meninos parecem que estão dadas à outro presente e suas esperanças sinalizam escassez, disputa e desamor. Não estamos taciturnos, estamos amedrontados. Somos omissos ou espremidos pela desfaçatez e pelo desrespeito. As mãos juvenis já não acenam, matam!

Para qual lugar esquecido se foi a infância do lápis de cor , dos contos da Carochinha, do medo do bicho-papão?

As novas fantasias estão nos muros, estão nas páginas policiais e cada vez mais próximas de nós. Armadas.

Fotografia de acervo

domingo, 5 de fevereiro de 2012

EMOÇÕES

EMOÇÕES *
Temos um lugar reservado dentro de nós para guardar nossas emoções? Roberto Carlos diz que elas são tantas, então se faz necessário um espaço reservado, personalizado para elas.

Emoções podem ser diferentes de surpresas. Podem ser iguais. Primeiro a surpresa e depois a emoção? Ou vice-versa?

Certo é que experimentamos emoções e surpresas em diversas graduações durante toda a vida. Existem aquelas que doem muito e nos acompanharam até o fim dos nossos dias. As que  serão relembradas eventualmente. Algumas convidam as lágrimas para participar. Outras, o riso. Muitas assustam. Tantas irritam.

Emoções e surpresas muito, muito especiais costumam não nos alcançar de imediato. Se apresentam e são recebidas com uma falsa naturalidade. Minutos, horas, dias , meses,anos depois retornarão à superfície da razão e, aí sim, serão sentidas na sua totalidade.

Viver é uma emoção e uma surpresa. Ser emocionante e surpreendente para a felicidade do outro é um dom. Recebê-lo do jeito que ele é, um prêmio.

Acordar amanhã, uma cortesia da Criação. Amar hoje, uma esperança em nós.

Fotografia de acervo

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

PIUMHI

PIUMHI *

Piumhi é a cidade da minha infância. É a cidade onde meu pai também viveu parte da sua história ao lado do meu avô, Augusto.

Nas férias da escola, num tempo em que o curso se chamava primário, íamos todos para lá: meus pais, eu e meus dois irmãos. Meu irmão caçula veio muito tempo depois e Piumhi, ao contrário da cidade de Drummond, não era um “retrato na parede”. Era saudade, saudade de um menino que ficou por lá entre suas ruas.

As primeiras viagens foram de jardineira. Um ônibus “bicudo”, janelas estreitas, a bagagem era colocada no teto, do lado de fora. Entrava em diversas cidades pelo caminho. As paradas eram menos regidas pelo tempo e mais pelo cansaço ou pela displicência dos passageiros. Quase uma excursão.
No destino, muitas opções de pousada. A maioria dos parentes  do meu pai tinham residência. E, claro, eram proprietários de fazendas!

As fazendas foram os meus latifúndios de liberdade e imaginação. Pescávamos à beira do São Francisco, do Chafariz. Dormíamos “com as galinhas”, acordávamos “com os galos”. Café, queijo Canastra, latas cheias de quitandas, o dia disponível de aventura e descoberta. A felicidade não tinha cerca. A vida era só horizontes.

Faz tempo que não vou à minha cidade da alma. Sei que mudou muito.Urbanizou-se em demasia. Globalizada nas novidades do “novo mundo”. Aquele mundo que não dá chances de andar entre o gado nos currais, de correr atrás dos cavalos, de pescar à noite, de ver um céu exclusivo de estrelas.

Piumhi, a minha, é maior que um retrato. Maior que a parede. Maior que tudo. Mas também dói. Ah, como dói!

A fotografia de ilustração está em www. eziodugloria.blogspot.com

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