FRAGMENTOS 2 *
Na rua de cima morava uma menina de olhinhos rasgados e com um sorriso mais sorriso que conheci. Sorriso doce de borboleta bocejando. Eu nunca havia visto alguém de carne e osso, de olhos tão esticadinhos e jeito tão maravilhoso de ser um ser humano.
Foi por acaso que nos conhecemos. Padre Geraldo queria conversar comigo na igreja. Coisas da missa de domingo. Eu ajudava e ele fazia questão de tudo sempre perfeito.
No meio do caminho dei de cara com a menina que vinha correndo com um embrulho nas mãos e uma pressa gigantesca dentro do peito.
- Desculpa…
- Cê num olha por onde anda, não?!
Ela abaixou para apanhar o embrulho. Roupas.
- Foi sem querer…
- …
- Sujou?
- Acho que não…
Sujou só um pouquinho. Ajudei a limpar.
- Sua mãe é costureira?
- Não. Estas roupas são dela. Eu fui buscar. Estavam um pouco largas. Mamãe pediu para apertar.
Aí encontrei os olhos dela.
- Você é do Japão?
Ela respondeu um não mudo que o tempo ouviu primeiro. Só depois eu.
Depois do susto, resolvi contar farol.
- Eu gosto de poesia…
O rostinho dela se iluminou. Ela veio para perto de mim. Quase sussurrou.
- Você gosta de ler, de escrever, ou das duas coisas?
Eu já tinha ouvido dizer que num mundo de ciências e matemáticas não existe muito espaço para poetas. Mas eu não queria que as ciências e as contas de vezes e de dividir acabassem com meu sonho ali, naquela hora. Importante era responder direito, com perfeição.
- As duas coisas…
- Você escreve poesia mesmo, que nem o Carlos Drumond, a Adélia Prado, o Antônio Barreto, o Manoel de Barros, a Cecília Meirelles, o Pablo Neruda, a Gabriela Mistral, o Mário Quintanna… ?
Ela disparou a recitar nome de gente poeta que eu nem nunca tinha ouvido falar. E de um jeito tão simples que eu tinha certeza de que não era humilhação dela para comigo. Resolvi fuçar o pensamento.
- Eu gosto do Olavo Bilac, do Fagundes Varella, do Gonçalves Dias…
- Não permita Deus que eu morra, sem que volte para lá…
- De quem é isso?!
- Do Gonçalves Dias! Você acabou de falar que gosta dele…
- É verdade. Eu tava só vendo se você sabe mesmo poesia…
- Poesia a gente não tem de saber só. Tem de amar e deixar que ela tome conta da gente.
- Quer ouvir um pedaço de uma poesia minha?
Ela arregalou os olhos.
- Você vai recitar uma poesia sua?!
E não é que eu ia mesmo!
* Do livro “A menina de olhinhos rasgados” – Editora Dimensão