FRAGMENTOS 1
Aqui a gente vivia a normalidade, a mansidão de acompanhar as sombras das nuvens enquanto elas passeavam por estes céus invertidos, recoloridos. Paz purinha. Eternidade bebida em golezinhos. Entristecia se houvesse qualquer aceleração, qualquer mexida desajeitada, reinvenção do sossego.
A última novidade era a Coroaci barriguda, esperando bebê novo para somar seis, porque aqui a filharada se conta pela rama. Modo mais fácil não tem. Punhadinhos de mão cheia, no mínimo, em cada casa. Não importa se tem reboco, se é de pau a pique, se é de palmeira ou de sapé. Abraço de mãe basta. Ainda não inventaram casa melhor.
Eustáquio Periquito troçava com a quantidade de crianças que nasciam, todo ano, por aqui. Dizia que se cada um fosse transportado pela cegonha, este lugar teria um cheiro insuportável de penas. Sem falar no tapete de titica a cobrir o chão. Tião Preto aprovava a ideia.
- Pego a Barulhenta, azeito a bichinha e espanto essa galinhada espichada que ocês chamam de cegonha!
- Mas o senhor dava conta de matar tantas assim ?!
Tião Preto mira no fundo dos olhos do perguntador, assuntando se a interrogação é de espanto ou de chacota. O interlocutor pasma com as profundezas do olhar miúdo do Tião Preto. Entre os dois olhares o tempo congelado é barreira intransponível para qualquer filho de Deus vivente de sacrifícios e de dores por estas bandas. Nesse congelamento, quem piscar esfarela, vira caco de vidro d’água.
O caçador não desiste, espremendo o outro com as mãos do seu próprio medo. Medo de que a “Barulhenta” possa não funcionar contra as cegonhas e venha saciar sua sede de carnificina em cima daquele escanifrado caco de gente, vento revestido de taquarinhas de ossos e carne rasinha.
* Do livro “Grigri”, inédito.