FRAGMENTOS *
Eu tenho certeza de que meu irmão estava perdendo a paciência comigo, moscazinha aloirada rondando à sua volta todas as vezes que ele fazia os exercícios do colégio.
Bonito, o meu irmão. Mais bonito quando, dentro do seu quarto, debruçava-se sobre os livros, escrevia e escrevia nos cadernos, resolvia problemas de Matemática e sabia o nome da capital de qualquer Estado brasileiro
- Vladimir…
- Oi…
- Qual é a capital do Estado de Tocantins?
- Palmas.
Mas promessa é dívida e insistia em lembrá-lo. Não que ele fosse tratante, isto não. Podíamos ter desavenças de vez em quando, que bem serviam para o sangue circular mais depressa e nos deixar vermelhos feito pimentões. Agora, trato é trato. Ponto de honra entre nós. Esquecimento, porém, é coisa possível de acontecer, não é defeito de caráter, é mais uma preguiça da memória. Quem é que nunca se esqueceu de alguma coisa, um dia?
Me lembro bem como foi. Estávamos dando um bom e prolongado banho no Sheik, um cão moleque e rebelde à água e sabão. Era sábado, uma tarde quente onde o vento, de barriga cheia, não tinha a menor vontade de se mexer. O Sheik sacudia o corpo e a água escapulia de seu pelo procurando refúgio na gente.
- Por que o mar é azul, Vladimir?
- Porque reflete a cor do céu, Ludmila.
- Mas tem mar verde! E nunca ouvi falar em céu verde!
- É por causa das algas marinhas que estão no fundo…
- O que é uma alga marinha?
- É uma espécie de alface de peixe…
- Ah…
Tínhamos que deixar o Sheik acorrentado para secar. Solto, danava a rolar pelo terreiro tornando o nosso trabalho perdido.
- Existe mar de outra cor?
- Tem o Mar Vermelho, que o Moisés separou ao meio para dar passagem aos hebreus que fugiam do Egito.
- Então posso inventar um mar de cor diferente? Por exemplo, um mar laranja?
Rindo, Vladimir deu-me um beijo na testa. Cheirávamos a pelo de cachorro molhado. E fez a promessa.
*Do livro “Truques”, inédito.
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