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segunda-feira, 28 de junho de 2010

MICHAEL JACKSON 3

FOTO:thewintergirl.files.wordpress.com/2009/07/mic...

Nesse jogo profano/sagrado ao qual Michael se submeteu, mas que também ditou as regras, seus fãs, como se numa hipnose da sociedade do espetáculo, assumiram uma cumplicidade com a metamorfose do ídolo, embalados pelas canções e pelo frenesi anatômico de um ser em estado de êxtase nos palcos e clipes. “Sua atuação total dos anos 1980 e 90”, analisa Ab'Sáber, “seu espetáculo total, incluindo aí o próprio corpo, a ponto de virar uma coisa de si próprio, sinalizou mesmo a época de mudança do modo de orientar a subjetividade frente ao crescente poder do mercado e o falimentar valor da política: do humanismo do sujeito sonhador ao fetichismo e exibicionismo do psiquismo atuador, que busca se identificar com o poder crescente e total da coisa na cultura, a ação visível da própria forma mercadoria sobre os homens”(...) “Desde "Thriller" Jackson tornou-se o efeito especial por excelência, a imagem técnica da própria indústria atuando sem parar, encarnada”.

Ao rotulá-lo de “eterno”, “imortal”, “o rei do pop” , a mídia ressacraliza a criatura que consumiu seu criador através de uma transformação mais contundente que a dissimulação de se travestir. Transformação que alterou a lógica de tudo. Sagrado por si mesmo, pelos fãs e pelos meios de comunicação, Jackson arcou com os riscos de profanar-se, numa espécie de pacto, para não ser o que era e acreditar-se ser o que não poderia. Como Jesus que sacrificou o corpo pela salvação dos homens, Michael disponibilizou o seu para a espetacularização de si mesmo. “O bonito jovem negro tornou-se andrógino, mas também branco, não apenas Diana Ross, mas também Liz Taylor, mas também, à medida que envelhecia, tornou-se imune ao tempo, perpetuamente jovem, ou criança, mas também coisa, brinquedo, o próprio corpo da mercadoria, boneco do sonho pop americano, ou Barbie, que virou Chuck, ou ídolo pop que virou múmia, ou Michael Jackson que virou zumbi...” analisa Ab´Saber. E, evidentemente, se viu obrigado a pagar um preço por isso.

O artista se ausentou dos palcos por vários anos. Nesse ínterim, seja por suas atitudes, seja pela necessidade de notícias dos suportes de entretenimento e do show business, ou pelos “possíveis” interesses escusos de terceiros, Jackson foi criticado pela sua mudança de cor (“Em 1989, Gilberto Gil sinalizava a conexão interior de transformismo, poder e morte, que todos intuímos no ídolo: "Bob Marley morreu/ Porque além de negro era judeu/ Michael Jackson ainda resiste/ Porque além de branco ficou triste", lembra Ab´Saber), pelas cirurgias plásticas, pelo cabelo, pelo comportamento familiar, pelas relações com o pai, pelas dívidas e, principalmente, pelos seus relacionamentos com crianças. Segundo Agamben, “ a profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava disponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso. Ambas as operações são políticas, mas a primeira tem a ver com o exercício do poder, o que é assegurado remetendo-o a um modelo sagrado; a segunda desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado”.

“Dispositivo” é uma palavra recorrente no pensamento de Foucault. O filósofo francês, em uma entrevista, sem a intenção de construir uma definição, diz que “ o que trato de indicar com este nome é, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que inclui discursos,instituições,instalações arquitetônicas, decisões regulamentadas, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, o dito e também o não dito”. Para ele , dispositivo “é uma espécie de formação que teve por função maior responder a uma emergência em um determinado momento. O dispositivo tem pois uma função estratégica dominante...O dispositivo está sempre inscrito em um jogo de poder”.

Dispositivo, na síntese de Agambem é, “em si mesmo a rede que se estabelece entre os elementos que compõem o conjunto heterogêneo que tem uma função concreta e está inscrito em uma relação de poder como algo geral porque inclui em si a episteme que é, para Foucault, aquilo que em determinada sociedade permite distinguir o que é aceito como um enunciado científico do que não é científico”.

Dispositivo de si, e à disposição de outros dispositivos, Michael Jackson “este novo Frankenstein espetacular, que realizou em sua metamorfose milionária e sinistra o estatuto autoritário da técnica, do dinheiro e da mercadoria sobre o corpo humano e sobre as relações do sentido das coisas, acabou por virar, e revelar, o pesadelo americano e, se todos os seus consumidores contribuíram com seu gozo diante da degradação do jovem ídolo, no fim das contas Jackson simplesmente não poderia ser preso pela América, como deveria ter sido, quando passou a "devorar" criancinhas como em um conto de fadas bizarro, que vem do real”, reflete Ab´Saber.

Para que se possa entender melhor toda essa instabilidade, esse conflito pelos quais Michael Jackson tanto transitou como produziu para realizar o seu moonwalk , Agamben diz que “ os filólogos não cansam de ficar surpreendidos com o dúplice e contraditório significado que o verbo profanare parece ter em latim: por um lado, tornar profano, por outro – em acepção atestada só em poucos casos – sacrificar. Trata-se de uma ambiguidade que parece inerente ao vocabulário do sagrado como tal: o adjetivo sacer , com um contra-senso que Freud já havia percebido, significaria tanto “augusto,consagrado aos deuses”, como “maldito, excluído da comunidade”.

A ambiguidade, que aqui está em jogo, não se deve apenas a um equívoco, mas é, por assim dizer, constitutiva da operação profanatória(ou daquela, inversa, da consagração). Enquanto se referem a um mesmo objeto que deve passar do profano ao sagrado e do sagrado ao profano, tais operações devem prestar contas, cada vez, a algo parecido com um resíduo de profanidade em toda coisa consagrada e a uma sobra de sacralidade presente em todo objeto profanado”. E prossegue: “Veja-se o termo sacer. Ele designa aquilo que, através do ato solene da sacratio ou da devotio (com que o comandante consagra sua vida aos deuses do inferno para assegurar a vitória), foi entregue aos deuses, pertence exclusivamente a eles. Contudo, na expressão homo sacer , o adjetivo parece designar um indivíduo que, tendo sido excluído da comunidade, pode ser morto impunemente mas não pode ser sacrificado aos deuses. O que aconteceu de fato, nesse caso? Um homem sagrado, ou seja, pertencente aos deuses, sobreviveu ao rito que o separou dos homens e continua levando uma existência aparentemente profana entre eles.

No mundo profano, é inerente ao seu corpo um resíduo irredutível de sacralidade, que o subtrai ao comércio normal com seus semelhantes e o expõe à possibilidade da morte violenta, que o devolve aos deuses aos quais realmente pertence; considerado, porém, na esfera divina, ele não pode ser sacrificado e é excluído do culto, pois sua vida já é propriedade dos deuses e, mesmo assim, enquanto sobrevive, por assim dizer, a si mesmo, ela introduz um resto incongruente de profanidade no âmbito do sagrado. Sagrado e profano representam, pois, na máquina do sacrifício, um sistema de dois pólos, no qual um significante flutuante transita de um âmbito para outro sem deixar de se referir ao mesmo objeto. Mas é precisamente desse modo que a máquina pode assegurar a partilha do uso entre os humanos e os divinos e pode devolver eventualmente aos homens o que havia sido consagrado aos deuses. Daí nasce a promiscuidade entre as duas operações no sacrifício romano , na qual uma parte da própria vítima consagrada acaba profanada por contágio e consumida pelos homens, enquanto outra é entregue aos deuses”.

Daí, no mundo contemporâneo onde Michael Jackson se fez/foi feito, esta promiscuidade dilui-se por vários “altares”, em cultos e rituais celebrados por diversos “sacerdotes e congregações midiáticas”. Ora, o homem profano/profanado se oferecia/era oferecido em sacrifício para retomar sua condição de sagrado. Ora, por ser sagrado, retornava/era retornado ao sacrifício da profanação para uma nova relação com o mundo dos comuns. Fênix da hipermodernidade, o menino Jackson aprendeu a “morrer” e “ressurgir dos mortos” e assim o fez por muito tempo. Foi um protótipo de um Quasímodo em busca de uma porta de saída para um Narciso que ele pressupunha existir dentro de si. Nessa obsessão pela possibilidade de reconstruir-se numa nova imagem, apaixonou-se por uma miragem e através dele , acreditou-se forte o bastante. Se essa frenética tentativa tenha sido tão criticada e ridicularizada, foi também incentivada. A fome da transformação foi alimentada e esta, ao contrário da de Narciso, em sendo saciada, foi o bastante para Michael. Viveu o entorpecimento de uma imagem imaginada. E ao mesmo tempo que se auto-devorava, foi devorado: “Todos sabemos, e Michael Jackson teve a loucura (ou a sanidade?) de deixar isto explícito, que aquela criança linda que entrou para a indústria do espetáculo aos cinco anos de idade, com voz de "castrato" e o soul de Marvin Gaye, é que foi devorada pelo verdadeiro monstro do nosso tempo. Mas o seu próprio desejo também criou esse monstro” avalia Ab´Saber.

Quais as razões que sustentam, então, essa conivência mórbida, essa cumplicidade mercantil que, superficializada num culto a idolatria e na sacralização de um mortal, quando o ser/objeto desse ritual lhes escapa ao controle e é sacrificado por sua própria vontade de não o ser? Por sua vontade de “ressurgir” dos mortos ao terceiro sinal e entre eles viver, “eternamente”, como um deus?

Recorrendo ao estudo de Agamben, “nessa perspectiva, tornam-se talvez mais compreensíveis o cuidado obsessivo e a implacável seriedade de que, na religião cristã, deviam dar mostras teólogos, pontífices e imperadores, a fim de garantirem, na medida do possível, a coerência e a inteligibilidade da noção de transubstanciação no sacrifício da missa, e das noções de encarnação e omousia no dogma trinitário. Ali estava em jogo nada menos que a sobrevivência de um sistema religioso que havia envolvido o próprio Deus como vítima do sacrifício e, desse modo, havia introduzido nele a separação que, no paganismo, tinha a ver apenas com as coisas humanas. Tratava-se,portanto, de resistir, através da contemporânea presença de suas naturezas numa única pessoa, ou numa só vítima, à confusão entre divino e humano que ameaçava paralisar a máquina sacrifical do cristianismo. A doutrina da encarnação garantia que a natureza divina e a humana estivessem presentes sem ambiguidade na mesma pessoa, assim como a transubstanciação garantia que as espécies do pão e do vinho se transformassem, sem resíduos, no corpo do Cristo. Acontece assim que, no cristianismo, com a entrada de Deus como vítima do sacrifício e com a forte presença de tendências messiânicas que colocaram em crise a distinção entre o sagrado e o profano, a máquina religiosa parece alcançar um ponto limítrofe ou uma zona de indecibilidade, em que a esfera divina está sempre prestes a colapsar na esfera humana, e o homem já transpassa sempre para o divino”.

Assim, Michael Jackson decidiu enfrentar/confrontar o deus dos deuses e entronizar-se como mais um ser sagrado entre os ídolos/santos cultuados pelos mortais. Ídolo, rei do universo do show bussiness, foi incensado e celebrado nos templos de uma religião monetária, lucrativa, comercial. Por isso, “Michael Jackson foi muito mais que um menino-problema que não aceitava a cor, a idade e a sexualidade que Deus lhe deu. Foi o maior artista pop do mundo”, afirma João Paulo. Na sua “caminhada por este mundo”, “ o maior ídolo pós-Beatles queria mudar os indivíduos, de preferência em direção ao prazer de viver”, completa o jornalista. Ainda que ele mesmo, provavelmente, não tenha experimentado desse prazer (incluindo as relações com o pai), como o Cristo que veio pregar o “amai-vos uns aos outros” e não foi amado por muitos, desamparado pelo Pai e crucificado por isso.

Benjamin, conforme relata Agamben, ao escrever sobre O capitalismo como religião, procura demonstrar que ele não reproduz tão somente a conversão da fé protestante em doutrina filosófica, conforme reflete Weber, “mas ele próprio é, essencialmente, um fenômeno religioso, que se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo”. Desse modo “o culto capitalista não está voltado para a redenção ou para a expiação de uma culpa, mas para a própria culpa.Precisamente porque tende com todas as suas forças não para a redenção, mas para a culpa, não para a esperança, mas para o desespero, o capitalismo como religião não tem em vista a transformação do mundo, mas a destruição do mesmo”, explica Giorgio.

A partir da leitura dos escritos de Benjamin, Agamben sugere que “ poderíamos dizer então que o capitalismo, levando ao extremo uma tendência já presente no cristianismo, generaliza e absolutiza, em todo âmbito, a estrutura da separação que define a religião”. Segundo suas observações, “onde o sacrifício marcava a passagem do profano ao sagrado e do sagrado ao profano, está agora um único, multiforme e incessante processo de separação, que investe toda coisa, todo lugar, toda atividade humana para dividi-la por si mesma e é totalmente indiferente à cisão sagrado/profano, divino/humano”. Isso significa, então, que “na sua forma extrema, a religião capitalista realiza a pura forma da separação, sem mais nada a separar. Uma profanação absoluta e sem resíduos coincide agora com uma consagração vazia e integral. E como, na mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche inapreensível, assim agora tudo o que é feito, produzido e vivido – também o corpo humano, também a sexualidade, também a linguagem – acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já não define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso se torna duravelmente impossível”.

Na interpretação do estudioso de Benjamin, “essa esfera é o consumo. Se, conforme foi sugerido, denominamos a fase extrema do capitalismo que estamos vivendo como espetáculo, na qual todas as coisas são exibidas na sua separação de si mesmas, então espetáculo e consumo são as duas faces de uma única impossibilidade de usar. O que não pode ser usado acaba, como tal, entregue ao consumo ou à exibição espetacular. Mas isso significa que se tornou impossível profanar (ou, pelo menos, exige procedimentos especiais). Se profanar significa restituir ao uso comum o que havia sido separado na esfera do sagrado, a religião capitalista, na sua fase extrema está voltada para a criação de algo absolutamente improfanável”.

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