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domingo, 27 de junho de 2010

MICHAEL JACKSON 2

FOTO:brunovelasco.files.wordpress.com/2009/07/mich.

O jogo do profano em nome da sagrada eternidade

Giorgio Agambem recupera da Roma antiga e faz um estudo sobre o significado de profanar e de sagrado: “Os juristas romanos sabiam perfeitamente o que significa “profanar”. Sagradas ou religiosas era as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas em usufruto ou gravadas de servidão. Sacrílego era todo ato que violasse ou transgredisse esta sua especial indisponibilidade, que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (nesse caso eram denominadas propriamente “sagradas”) ou infernais(nesse caso eram simplesmente chamadas “religiosas”).E se consagrar(sacrare) era o termo que designava a saída das coisas da esfera do direito humano, profanar, por sua vez, significava restituí-las ao livre uso dos homens. “Profano” podia escrever o grande jurista Trebácio – “em sentido próprio denomina-se aquilo que, de sagrado ou religioso que era, é devolvido ao uso e à propriedade dos homens. E “puro” era o lugar que havia sido desvinculado da sua destinação aos deuses dos mortos e já não era “nem sagrado, nem santo, nem religioso, liberado de todos os nomes desse gênero”.

Nesta perspectiva, o astro da música pop fez a trajetória inversa, profanando seu corpo para se afastar do convívio dos homens, do uso comum deles e se tornar um “deus”. Assim, só ele poderia, então, ir e vir nessa relação entre o profano e o sagrado. Só ele poderia fazer-se uma “religião”, determinar seus cultos e rituais, decidir em descer ou subir aos céus, independente se ao terceiro ou trigésimo dia.

Tales Ab'Sáber entende que “Michael Jackson representou outro modo de viver e de morrer no universo tanático dionisíaco do pop. Ele é um artista positivo, da afirmação do que existe, e da realização total desse próprio espaço social e histórico em seu corpo. Em primeiro lugar, tudo já foi dito sobre ele, e tocar outra vez no sistema explícito de suas formas e de seu dilema é simplesmente confirmar um clichê, uma reiteração do espetacular”. Michael se fez uma religião e dessa forma garantiu a continuidade de sua mutação física, do seu enclausuramento e dos seus mistérios através de continuados sacrifícios. Garantia que recebeu o aval da mídia – mesmo nos momentos mais delicados da vida pessoal do astro – que, junto com os palcos, foi também um altar de Jackson.

“Pode se definir como religião aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada”, afirma Agamben . Contudo, na percepção do filósofo também existe a religião sem a necessidade da separação e que esta última “contém ou conserva em si um núcleo genuinamente religioso”. Segundo ele, “o dispositivo que realiza e regula a separação é o sacrifício: através de uma série de rituais minuciosos, diferenciados segundo a variedade das culturas, e que Hubert e Mauss inventariaram pacientemente, ele estabelece, em todo o caso, a passagem de algo do profano para o sagrado, da esfera humana para a divina. É essencial o corte que separa as duas esferas, o limiar que a vítima deve atravessar, não importando se num sentido ou noutro. O que foi separado ritualmente pode ser restituído, mediante o rito, à esfera profana”.

O artista soube – talvez nem sempre de modo intencional – transitar pelos dois universos. Ora, envolto pelo sagrado, “desaparecia” e somente sabia-se que estava “entre nós” através de notas e “fofocas”. Ora, “ressuscitava” e circulava pelo mundo “pagão”, “sacrificando-se” e experimentando a convivência com os homens e o prazer de se deixar profanar. Diz Agamben que “ uma das formas mais simples de profanação ocorre através de contato(contagione) no mesmo sacrifício que realiza e regula a passagem da vítima da esfera humana para a divina. Uma parte dela(as entranhas, fígado, o coração, a vesícula biliar, os pulmões) está reservada aos deuses, enquanto o restante pode ser consumido pelos homens. Basta que os participantes do rito toquem essas carnes para que se tornem profanas e possam ser simplesmente comidas. Há um contágio profano, um tocar que desencanta e devolve ao uso aquilo que o sagrado havia separado e petrificado”.

As “carnes mortas” de Jackson não foram liberadas para o toque e, por vingança, os homens famintos de consumi-la então profanam a morte do ídolo ao acreditarem na possibilidade de ele não estar morto. Fica ele, assim, “a vagar” , como um castigo.

Para o jornalista e crítico, João Paulo, Michael “ como Elvis Presley e John Lennon, criou um novo padrão, que inspira e continuará inspirando artistas e fãs em todo o mundo.Talvez, por isso, tenha sido difícil aceitar a notícia de que o artista morreu do coração. Exatamente por causa do coração. O maior artista pop do mundo deu vida a uma obra genial, em sua inteligência intuitiva para fusões e diálogos, mas sobretudo pela emoção. Seus dramas pessoais pareciam ampliar seu engenho e arte, como se arte surgisse para apaziguar a alma”. Ao comunicar suas opiniões, o texto do jornalista sugere um chamamento de leitores-fãs . Eliseo Verón aponta que “ é a posição de enunciação pedagógica que define o enunciado e o destinatário como desiguais:o primeiro mostra, explica,aconselha; o segundo olha, compreende, tira proveito. A posição de enunciação “distanciada” e não-pedagógica induz uma certa simetria entre o enunciador e o destinatário: o primeiro, mostrando uma maneira de ver as coisas, convida o destinatário a adotar o mesmo ponto de vista ou, pelo menos, a apreciar a maneira de mostrar tanto quanto o que é mostrado”.

Devido a uma inconsistente etimologia, de acordo com Agamben, a palavra religio, não provem de religare( o que liga e une o humano e o divino), mas de relegere, “que indica a atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação(o “reler”) perante as formas e as fórmulas – que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano”. Religio “não é o que une homens e deuses, mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos”. Por isso, no seu entendimento , a descrença e o desdém não são obstáculos com relação ao divino, “ mas a “negligência”, uma atitude livre e “distraída” – ou seja, desvinculada da religio das normas – diante das coisas e do seu uso, diante das formas da separação e do seu significado. Profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular”. Portanto, “ele não morreu” ou “tenha sido difícil aceitar a notícia de que o artista morreu do coração”, escreve João Paulo.

Jackson jogava, tal como “jogam os deuses”. A passagem do sagrado ao profano pode acontecer também por meio de um uso (ou melhor, de um reuso) totalmente incongruente do sagrado. Trata-se do jogo. Sabe-se que as esferas do sagrado e do jogo estão estreitamente vinculadas. A maioria dos jogos que conhecemos deriva de antigas cerimônias sacras, de rituais e de práticas divinatórias que outrora pertenciam à esfera religiosa em sentido amplo.

“Ao analisar a relação entre jogo e rito”, relata Agamben, “Emile Benevistes mostrou que o jogo não só provêm da esfera do sagrado, mas também de algum modo, representa a sua inversão. A potência do ato sagrado – escreve ele – reside na conjunção do mito que narra a história com o rito que a reproduz e a põe em cena. O jogo quebra essa unidade como ludus ou jogo de ação, faz desaparecer o mito e conserva o rito; como jocus ou jogo de palavras, ele cancela o rito e deixa sobreviver o mito, “se o sagrado pode ser definido através da unidade consubstancial entre o mito e o rito, poderíamos dizer que há jogo quando apenas metade da operação sagrada é realizada, traduzindo só mito em palavras e só o rito em ações” .

Aqui então se vê expresso que esse “jogo” desobriga e desloca as pessoas do campo do sagrado. Contudo, o sagrado não desaparece no todo. Infere Agamben que “o uso a que o sagrado é devolvido é um uso especial que não coincide com o consumo utilitarista. (...)É comum, tanto nesses casos como na profanação do sagrado, a passagem de uma religio , que já é percebida como falsa ou opressora para a negligência como vera religio”.

Nesse jogo profano/sagrado ao qual Michael se submeteu, mas que também ditou as regras, seus fãs, como se numa hipnose da sociedade do espetáculo, assumiram uma cumplicidade com a metamorfose do ídolo, embalados pelas canções e pelo frenesi anatômico de um ser em estado de êxtase nos palcos e clipes. “Sua atuação total dos anos 1980 e 90”, analisa Ab'Sáber, “seu espetáculo total, incluindo aí o próprio corpo, a ponto de virar uma coisa de si próprio, sinalizou mesmo a época de mudança do modo de orientar a subjetividade frente ao crescente poder do mercado e o falimentar valor da política: do humanismo do sujeito sonhador ao fetichismo e exibicionismo do psiquismo atuador, que busca se identificar com o poder crescente e total da coisa na cultura, a ação visível da própria forma mercadoria sobre os homens”(...) “Desde "Thriller" Jackson tornou-se o efeito especial por excelência, a imagem técnica da própria indústria atuando sem parar, encarnada”.

Um comentário:

  1. ESTE FOI UM DOS MELHORES, SENÃO O MELHOR, TEXTO PARA DESCREVER O MITO MICHAEL JACKSON. ERA TUDO O QUE EU QUERIA DIZER, MAS NÃO ENCONTRAVA AS PALAVRAS.TEXTO VERDADEIRO E INSPIRADOR.
    VOU SALVAR A PÁGINA. MARAVILHOSO
    PELA SSUA ESSÊNCIA. ROSANE

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